segunda-feira, 24 de maio de 2010

Contar histórias já é negócio de gente grande

Exclusivo VEJA.com
Contar histórias já é negócio de gente grande
21 de maio de 2010
Por Maria Carolina Maia
O israelense naturalizado brasileiro Ilan Brenman vive de escrever e narrar histórias (Foto: Divulgação)
"Há muito, muito tempo, existia um imperador chamado Gengis Khan. Esse imperador era muito poderoso. Quando ele não estava conquistando terras, ficava descansando no seu castelo de veraneio. O hobby preferido do imperador era caçar. Com quem? Com uma águia, que ele levava no braço." Este é um trecho de O Imperador e a Águia, uma das histórias que compõem o repertório do contador Ilan Brenman. Israelense naturalizado brasileiro, Ilan, 37, vive de contar histórias. Mas se engana quem pensa que contadores como ele têm como público as crianças, apenas. A atividade de narrar histórias se tornou um negócio de gente grande - tanto para públicos infantis quanto para maduros. Por cada palestra que dá em escolas sobre o tema, ele recebe de 2.000 a 3.000 reais.
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"Vivo de contar histórias e vivo muito bem", diz outra narradora, a atriz Ana Luísa Lacombe, 46. Ela enveredou pelo ramo há oito anos e hoje se apresenta em locais variados, de clubes a projetos sociais, contando histórias para adultos e crianças de todas as idades. "Só faço isso."
Brenman começou há quase duas décadas. Ao longo desse tempo, viu a atividade crescer - especialmente nos últimos anos - e arregimentar um público cada vez maior. Uma das fontes de renda de Brenman, um projeto de narração de histórias para adultos, feito em uma livraria de São Paulo, teve início com uma apresentação por semana, há seis anos. Hoje, já são quatro apresentações semanais, com a casa cheia. "Recentemente, houve um boom atroz da atividade. Quando eu comecei, contar histórias era uma coisa rara, hoje é uma avalanche. Os guias culturais passaram a trazer notícias de apresentações de contadores. É um mercado que se expandiu", comenta Brenman.
Doroty Rojas, programadora do Sistema Municipal de Bibliotecas de São Paulo, atesta. "É visível que a demanda se intensifica, não somente em nossos endereços, mas também em espaços culturais privados e alternativos." Uma das bibliotecas geridas por Doroty, a Hans Christian Andersen, do Tatuapé, duplicou o número de vagas em seus cursos de formação de contadores para atender à procura. Em 2008, a biblioteca realizou dois cursos de 35 pessoas cada. Neste ano, serão duas turmas de 70 alunos.
O número de inscritos por classe - que no segundo semestre de 2008 chegou a atingir 412 pessoas - permanece alto. São cerca de 200 pessoas para cada turma, contra 65 no primeiro semestre de 2008 e apenas 30 em 2007.
No município de Cordisburgo, Minas Gerais, contar histórias é também uma forma de ter um futuro acadêmico e profissional mais promissor. O Grupo de Contadores de Estórias Miguilim, projeto focado em textos de Guimarães Rosa, encaminha jovens de classe baixa da cidade natal do escritor para a narração de histórias e para a educação - leia mais aqui.
Institucionalizaçã o e moda - Para Ilan Brenman, o aumento do interesse pelas narrativas orais pode ser visto como uma reação da sociedade ao ritmo do mundo atual. Um ritmo acelerado, em que as pessoas pouco se falam e se tocam. A opinião do contador é partilhada pela cineasta Laís Bodanzky, que no último dia 11 participou do Boca do Céu - Encontro Internacional de Contadores de Histórias, evento anual de narração de histórias realizado em São Paulo – saiba mais aqui. "Os contadores de história nos lembram da importância de nos desplugarmos do nosso pequeno universo e aprender a ouvir e a olhar nos olhos das pessoas."
Pesquisadora e professora da USP, Regina Machado, també m idealizadora do evento, faz coro a Brenman e Laís. "No mundo, hoje, há muita réplica e excesso de informação, mas pouca qualidade nas relações humanas, nos contatos e nos encontros, e a narração de história propicia isso", pondera Regina, para quem há uma expansão da atividade não apenas no Brasil, mas em todo o mundo.
Regina só não gosta do alvoroço em torno da atividade, surgido no embalo de seu recente aumento. Abomina, por exemplo, o termo "contação" de história, que, para ela, representa um "modismo". "Eu não faço contação de histórias. Para mim, esse é um nome que vulgariza a coisa. A narração de histórias é uma forma de aprendizado para quem ouve e para quem narra. Mas quem entra na onda da moda não aprende muito."
Mas se, como toda moda, essa passará, o trabalho dos contadores deve continuar. Para a pesquisadora, não se pode prescindir da narração oral. "As histórias têm uma função simbólica importante para o ser humano de qualquer época e de qualquer lugar."

Para especialistas, narração constrói a memória e a identidade do país
21 de maio de 2010
Por Maria Carolina Maia
Debate: a antropóloga Lilia Schwarcz, a filósofa Olgária Matos, a mediadora Beatriz Machado e a cineasta Laís Bodanzky, durante encontro internacional de contadores de história, em São Paulo (Foto: Pedro Machado)
No Brasil oitocentista, recém-emancipado de Portugal, um novo órgão público - o Instituto Histórico e Geográfico, ancestral do IBGE - lança um concurso: "Como Escrever a História do Brasil". Entre os concorrentes, sagrou-se campeão o naturalista alemão Karl Friedrich Phillipp Von Martius, com a tese de que o Brasil era um grande caldo formado pelo volumoso rio branco (ou português) e seus dois confluentes, os rios negro e indígena. Estava criado o mito das três raças, até hoje constituinte da identidade nacional. "Este é um exemplo gritante de como as nações constroem os seus mitos e inventam uma identidade a partir de um corpo de histórias que se transformam em versões oficiais", explica a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz.
No caso dos contadores profissionais ou amadores, além de uma criação constante de explicações para os fenômenos da vida cotidiana, há um trabalho de perpetuar a memória do país. É o que diz a cineasta Laís Bodanzky. "Um grande foco dos contadores de história é o público infantil, o que é ótimo. Este é um público que absorve tudo com rapidez, inclusive esse repertório de Brasil que vem de geração em geração e desemboca nas crianças, muitas vezes, através dos contadores de história."

Em Minas, contar histórias de Guimarães Rosa dá futuro
20 de maio de 2010
Por Maria Carolina Maia
No Museu Casa de Guimarães Rosa, em Cordisburgo, 'Miguilim' narra texto do escritor (Foto: Maria Carolina Maia)
"Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas." A cena em que Miguilim, personagem do livroManuelzão e Miguilim, de Guimarães Rosa, experimenta pela primeira vez os óculos, é uma metáfora poderosa para o Grupo de Contadores de Estórias Miguilim. Criado em 1995, o grupo, que narra apenas histórias de Rosa, vem transformando a perspectiva de jovens de classe baixa de Cordisburgo, cidade natal do escritor mineiro. O projeto demanda de seus participantes que tenham bom desempenho na escola, da qual a maioria sai para trilhar outros estudos.
Para Tiago, a passagem pelos Miguilins foi fundamental para que ele continuasse os estudos. "Contar histórias me abriu várias portas e me permitiu atravessar bem a adolescência. Se eu não tivesse participado dos Miguilins, talvez eu não tivesse lido Guimarães Rosa e agora não estivesse estudando." Além da condição de ter boas notas enquanto participante do projeto, e do incentivo para não deixar de estudar, a ligação com o grupo dos Miguilins proporcionou moradia em BH. Explica-se: a médica Calina Guimarães, prima de Guimarães Rosa e criadora do projeto, mantém na capital um apartamento que recebe meninos de Cordisburgo e os ajuda a estruturar a vida na cidade grande.

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